11 novembro, 2008

História de Barg, o dragão

É sabido que as lendas têm por trás um fundo de verdade; uma história verídica que, finados os protagonistas, testemunhas e demais contemporâneos, sofreu distorções inerentes à tradição oral, ao fervor épico ou ao eloquente lirismo dos contadores de histórias.

A história dos dragões não é uma destas: é a mais pura das verdades, atestada pela firmeza com que perdurou até hoje, apesar da desoladora inexistência de vestígios que suportem tal veracidade. Em particular, é verdadeira a história de Barg, a hedionda avantesma que ainda hoje ressona na sua caverna escondida recheada de ouro e jóias, já muito velho para que a honra de uma visita sua tenha acontecido a qualquer homem ou mulher, criança ou velho do Lugar.

Esta é a história de Barg, o dragão. As tradições mais antigas colocam a sua chegada ao Lugar de Hueiras no tempo do rei Teotónio, o sexto da primeira dinastia. Chegou sem aviso a um lugar onde ninguém jamais ouvira falar de tais vermes; envolto em chamas, conta-se que as próprias nuvens se incendiavam à sua passagem e que o céu era como um mar de fogo. Arderam pastagens e florestas, cursos de água desapareciam em fumarolas; formavam-se tornados de fumo negro no imenso braseiro, com línguas de fogo que levavam cada vez mais longe o incêndio. O povo deu por findos os seus dias e temeu o naufrágio da terra no Inferno.

Barg instalou-se numa ampla e confortável caverna, na serra que ficou conhecida como Batam S'Intra, a Montanha do Dragão, depois de transformar as terras em volta, outrora verdejantes, na imensa charneca castanha que são as terras ermas de Cascais. Era ainda um dragão jovem e não passava muito tempo no seu covil. Saía em todas as estações secas, visto que a chuva provocava irritação às suas jovens escamas; entretinha-se a atear pequenos incêndios na charneca, pelo puro prazer de ver o fogo crescer e espalhar-se e consumir léguas e léguas de floresta e mato.

Todos os anos, interrompia os seus passeios com a chegada das chuvas, a que se seguia um longo e implacável Inverno de neve e gelo; mas, na Primavera, com os primeiros dias de calor, a cobertura glacial derretia e formava charcos onde nova vida se desenvolvia rapidamente; apenas para que, no Verão, Barg regressasse para pôr um fim abrasador a todo o trabalho rejuvenescedor da Natureza.

Assim se passaram os anos da juventude de Barg. Bem longe da Montanha, na sua capital junto à foz do grande rio Tejo, o rei Teotónio apercebia-se da cada vez mais preocupante escassez de carne de caça à sua mesa. O povo hueirense era empreendedor, contudo, e florescia o negócio de fumados de veado, javali, cabra-montês e boi-almiscarado. Foi pelos relatos dos corajosos apanhadores de carcaças que o rei veio a ter conhecimento da existência do dragão, antes de este saber da existência de humanos.

Prudente, informou-se junto dos estudiosos e dos viajantes. Aprendeu sobre os hábitos dos dragões e soube que eram irresistivelmente atraídos por ouro, jóias e outros objectos valiosos; soube que vários tinham sido combatidos com sucesso e mortos por cavaleiros em armaduras reluzentes. Desde modo, decidiu enviar o seu campeão, São Jorge, armado e ricamente ornamentado para melhor atraír a cobiça do dragão, à toca deste, durante o seu descanso hibernal.

Mas Barg, que ainda não era um adolescente pela contagem de dragão, não reagiu às jóias com a avidez esperada; além disso, estava muito confortável na sua letargia. Olhou com desinteresse para aquela estranha criatura metálica que se equilibrava a custo noutra criatura - um cavalo, sim, essa era sua conhecida dos churrascos nas estepes...

São Jorge, então, tirou o elmo emplumado e proferiu o seu desafio, em nome do Rei Teotónio e de todas as terras a Sul de Batam S'Intra. Barg, surpreendido, sentiu despertar dentro de si alguma memória há muito esquecida, de quando brincava com os seus amigos dragões, no ninho, com criaturas que andavam sobre duas pernas, apanhadas pelos progenitores, que lhes diziam tratarem-se de humanos.

Barg estava há tanto tempo longe da família, sozinho naquela terra estrangeira, que quase se esquecera dos grandes olhos e narinas benevolentes dos seus pais. E, como acontecia frequentemente com os dragões quando lhes dava o sentimento, Barg sentiu uma contracção involuntária na sua longa traqueia e soltou um violento soluço de chamas ardentes, que derreteram a armadura do santo cavaleiro e chamuscou as crinas do seu nobre corcel; este empinou-se, em pânico e largou a trote pelas enxostas abaixo, arrastando São Jorge severamente queimado pelos os arreios.

No torvelinho de sentimentos, entre a nostalgia e a surpresa Barg reconheceu um impulso de desejo, um instinto de cobiça que era próprio dos dragões, e percebeu que estava de algum modo relacionado com a armadura reluzente e as jóias transportadas pelo cavaleiro. Despertou por completo e saíu voando atrás do corcel que galopava, aterrorizado, lá em baixo, na charneca. Colocando-se por trás, em voo razante, soprava pequenas chamas que soltavam as jóias da armadura e acabavam de grelhar São Jorge dentro desta. Quanto viu que soltava a última, abandonou a perseguição para juntar todos os pedacinhos coloridos num montinho, que cobriu com o seu ventre sensível de dragão. E sentiu um prazer que jamais conhecera na sua curta vida...

Entretanto, o cavalo de São Jorge acabou por ir dar à cidadela do Rei Teotónio, arrastando uma amálgama de metal derretido que continha já as relíquias de São Jorge. Ainda hoje este relicário é venerado na Igreja Matriz de Hueiras.

Barg o resto do Inverno a explorar a novidade deste recém-descoberto prazer que era deitar-se em cima de um monte de coisas preciosas. Levou os despojos para a sua caverna e sentiu-se tão bem que o Verão chegou e ele negligenciou a sua ocupação anterior de incendiário. As estepes voltaram a cobrir-se de vida durante esse ano sabático.

No entanto, Barg acabou por sentir nascer-lhe uma nova insatisfação. O dragão adulto manifestava-se já no seu espírito e a cobiça dava rapidamente lugar à avidez. Começou, então, uma nova fase da sua vida, procurando mais riquezas e acabando por descobrir que os dragões e os humanos tinham algo em comum; passou a atacar caravanas de mercadores para lhes tirar as moedas e as gemas, pelas quais sentia um insaciável apetite. Para coroar estas investidas, acendia fogueiras triunfais com os cadáveres e os despojos não valiosos.

Estes ataques traziam-no cada vez mais perto da praça-forte de Hueiras. Crescendo em poder, tamanho e malícia, cada vez mais confiante e orgulhoso do seu monte de pedras preciosas, Barg ia vencendo a inquietação que lhe provocava a proximidade do Grande Rio, o Tejo de muitos povos.

Uma noite, atacou a cidadela e acendeu, um por um, os muitos telhados de colmo, que cobriam as habitações pobres onde descobriu que havia pouco para pilhar. Redescobriu o deleite de observar o espectáculo das chamas, onde via reflexos do ouro em que se deitava na sua caverna. Envolto em labaredas, voou em círculos em torno do castelo de Santo Amaro, a fortaleza do Rei Teotónio. Sentia que as principais riquezas eram guardadas atrás dos seus portões de ferro.

Desceu e pousou com grande impacto do seu corpanzil na calçada, decidido a derreter a barreira que se interpunha entre ele e o seu objectivo. Mas, para seu grande incómodo, nem o fogo do pai de todos os dragões conseguiria derreter os portões de Santo Amaro, forjados pelos gigantes das montanhas do longínquo Leste, do minério da própria rocha em que o Altíssimo gravara os seus mandamentos.

E ao Altíssimo dirigia o Rei os seus pensamentos nesse momento de grande angústia; e invocou a protecção de Deus para o seu povo e Deus, misericordioso, enviou o seu Espírito para combater o furioso dragão.

Sob a forma terrível de Pomba Branca, o Espírito Santo combateu Barg, a avantesma, e o combate entre ambos deu tema à maior canção épica desses tempos. O fogo da Terra combatia o fogo do Céu e o equilíbrio era total; foi só a menor experiência do dragão que ditou a sorte do combate. O rio Tejo e o ascendente do Espírito Santo junto das aves palustres contribuiram para a sua queda.

Barg, cansado e furioso, não viu o bando numeroso que se aproximou a coberto do fumo e vapôr; eram pelicanos e traziam as enormes goelas cheias de água. A surpresa e o choque tiveram um efeito devastador no dragão, encharcado, humilhado e apagado. Caíu sobre as ruínas da cidade, espalhando os escombros e os cadáveres enquanto se contorcia com dolorosas comichões. Das suas fauces só saíam vapores inofensivos; sufocava.

Conseguiu rastejar até à sua caverna, porque todos os vermes aprendem em pequeninos a movimentar-se pelo chão por impulso de contorções. Deixou um rasto de podridão e vergonha pelos coutos do Rei Teotónio.

O Espírito Santo não o perseguiu. Sabia que, mesmo tendo-o deixado fora de combate, não tinha poder para destruir Barg. Sabiamente, pagou aos seus mercenários com farto maná e voltou para o Céu.

Durante anos, Barg permaneceu na sua caverna, rosnando de raiva e dores inimagináveis. Passou todo o tempo em cima do seu tesouro e não causou mais problemas a D. Teotónio e sua gleba. Refogava em lume brando um novo ódio frio a todo o reino de Hueiras e seus habitantes. Por esse tempo foi amadurecendo e crescendo em malícia, garantindo a si próprio que voltaria a atacar Hueiras, quando tivesse a certeza de não deixar pedra sobre pedra.

A Porta do Submundo III

Trompo, o décimo rei de Hueiras, foi entronizado ainda adolescente após a morte do seu pai, Amagadão, que definhou e morreu de desgosto, velho mas sem atingir idade centenária. Nesse tempo os hueirenses acreditavam que a Porta tinha sido fechada para sempre; os mais atentos, contudo, podiam verificar que o antigo bloco de basalto tinha assentado ligeiramente ao ser recolocado na abertura e esta não ficara hermeticamente selada: havia um intervalo, no topo, por onde não passaria um fio de cabelo, mas lembrava aos mais desiludidos que a História é uma viagem sem regresso e o que foi feito não pode ser desfeito.

Aconteceu que o Lugar d'Hueiras foi atingido por uma terrível praga de mosquitos, ainda o povo do Lugar não caíra na conta do contrasenso em que incorria ao dirigir-se ao jovem Trompo como "Pequena Majestade" - eram barrocos e abusadores de uma língua degenerada que se aprazia em urdir monstros como títulos, com que agraciavam um "Grande Ministro" ou a respeitada classe profissional dos Mestres Menores. Sua Pequena Majestade Trompolemeu Filiopater, era mesmo assim, não declinado (como alguns sugeriam que pudesse ser - Filio Patris, filhinho do papá); em suma, um verdadeiro mistério filológico para alimentar as teologias dos séculos vindouros.

Os mosquitos atacavam em grandes enxames e, por maior que fosse o número dos que morriam sob as palmadas dos hueireses, vinham sempre mais. Picavam até só restar um cadáver exangue e passavam a nova vítima.

O rei Trompo dormia com uma real rede mosquiteira e fizera-se guardar por um Corpo de Reais Mosquiteiros, treinados no uso dos seus floretes afiados até se tornarem exímios em fazer espetadas de mosquitos. O zelo dos Mosquiteiros, no entanto, não evitou que os mosquitos acabassem por descobrir caminho para a real câmara pelo buraco da fechadura, tendo havido grande confusão entre a mosquitada quando se depararam com a cortina de seda ungida com urina de bode que encerrava o leito de Sua Pequena Majestade.

Tanto zumbiram e zurziram que o Rei, impedido de dormir durante várias noites seguidas, entrou em delírio. Saía da protecção dos cristais de ureia e carregava nas bestinhas com o seu montante afiado, procurando cortá-los em dois. Apesar do rigoroso treino e da sua compleição exageradamente atlética, como era moda entre os jovens daquele tempo, acabava por cansar-se e voltava a refugiar-se debaixo do dossel, impedido de dormir pela barulheira constante, entregue a cada vez mais negros pensamentos.

O delírio arrastava-se para uma demência cada vez mais persistente; piorou um dia, quando o rei saíu dos seus aposentos, nú e armado com um cinto de couro, arremessando o cinto como um chicote contra as paredes, segundo ele para atingir os temíveis mosquitos de sete ferrões. Que havia de brandir o cinto incessantemente até as paredes ficarem cobertas de pequenas pintas de sangue; até a cal desaparecer sob os cadáveres estripados dos ignominiosos insectos!, bradava. De facto, passadas mais umas noites esquizóides, o cinto começava a ganhar volume e as paredes exalavam um odor fétido a podridão.

Então, sem causa aparente que o justificasse, a praga retirou-se, tendo dizimado uma... eeh... décima parte da população de Hueiras, e instalou-se no Pântano das Visões. O rei adolescente, incurável já da sua loucura, perseguiu-os febrilmente, brandindo o cinto até se perder nas brenhas e nos charcos do paúl. Acabou por ser devorado por uma planta carnívora, de uma espécie autóctone dos pântanos hueirenses chamada Mordetrinca. Os sábios botânicos do Lugar não perderam tempo a procurar sossegar a população horrorizada, defendendo a Mordetrinca, que não ataca seres humanos - apenas queria apanhar o cinto.

Assim se perdeu o décimo rei de Hueiras, deixando um trono sem herdeiro e abrindo caminho à primeira e sangrenta guerra pela sucessão.