26 novembro, 2006

A Porta do Sub-Mundo I

Este livro remete-nos para a tradição mais antiga do Lugar de Ueiras. Foi, provavelmente, copiada pelos irmãos Marcos e Ludius (conjectura suportada porque um conjunto de manuscritos sobre esses tempos fazia parte do volume de pergaminhos). A intenção dos monges era - tudo leva a crer nisso - compilar na sua crónica alguma da Tradição anterior. Não se conhecem escritos mais antigos do que estes que se refiram aos tempos das primeiras dinastias do Lugar, nem referências a obras dessa natureza. Sabe-se, contudo, que o Velho da Montanha possuia na sua torre, em Sintra, a mais completa biblioteca de todos os reinos do Lugar. Marcos e Ludius eram dados como próximos do Velho e acredita-se na possibilidade de terem usado como fonte a sua biblioteca. Outra hipótese plausível, fazendo fé no testemunho dos próprios acerca das excelência da gente do Lugar - em especial, os Amarenses - para contar histórias, é que os monges tenham escrito, eles próprios, uma antologia da tradição oral.

O texto original seria, no entanto, praticamente contemporâneo dos dois monges. As terras do Alto Tejo não são, geralmente, referidas na bibliografia Ueirense que chegou até aos nossos dias, exceptuando a mais recente, escrita nos anos que antecederam a destruição do Lugar.

Começa aqui o texto dos irmãos Marcus e Ludius:

Muito acima no seu curso, o Rio Tejo atravessa o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes. No fundo da profunda garganta, onde a luz do Sol nunca chega, existe uma poderosa fortaleza de pedra. Acreditou-se durante muito tempo que fora construída em tempos imemoriais e ocupada para defender de inimigos a passagem das montanhas; sabe-se que até ao tempo do rei Bartolomeu I de El-Shish se chegou a manter aí uma guarnição permanente, mas poucos sabem a razão porque foi abandonada. Os que afirmam saber alguma coisa dizem que soldados desapareciam misteriosamente quando se afastavam em patrulha, sem que em toda a sua história a fortaleza tenha alguma vez sido atacada pelo inimigo; dos monarcas que se sucederam após Bartolomeu I nenhum insistiu em manter a fortaleza ocupada e esta mantém-se até aos nossos dias abandonada e fora do conhecimento da maioria.

Recentemente, contudo, tem-se ouvido mencionar esse lugar, associado a histórias terríveis. As vastas terras do Alto Tejo, montanhosas e cobertas de matos e florestas, há muito que são evitadas por serem desertas e abrigarem bandidos; ultimamente ouve-se falar de espectros que vivem nas sombras e outras criaturas terríves são avistadas em plena luz do dia. Diz-se, também, que todas estas hediondas criaturas provêm de um só lugar: o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes.

Uma antiga tradição diz que, no tempo em que os antepassados dos primeiros habitantes do Lugar começaram a chegar, se abriu, no vale do Tejo, uma porta para o Sub-Mundo. Toda a espécie de criaturas imundas podia saír para matar, aterrorizar e conspurcar os habitantes da região e os reis desse tempo tinham selado a Porta com pedra, fogo e encantamentos e um alto sacerdote vigiava esse lugar, escolhido entre os mais sábios e poderosos, consagrando-se a essa missão até ao soltar do seu último suspiro. Muitos túmulos de sacerdotes foram aí construídos, até que a ameaça foi considerada extinta e o lugar foi abandonado.

Escritos desse tempo, quase desconhecidos, dizem que o submundo se estendia por baixo de toda a superfície das terras e de todos os mares e que fora criado po Deus para aprisionar todas as criaturas perversas a que dera origem, por engano e, assim, fingir que não existiam.

Três passagens sobreviveram: uma num vale terrestre, uma no oceano e outra, ainda, nas profundezas ardentes de um vulcão activo. O Espírito Santo fechara as três com a sua magia; permaneceriam escondidas até que os homens as descobriram, pois podiam ouvir o eco dos apelos malditos com o lado escuro do seu coração. Abriram-nas e soltaram exércitos de espíritos furiosos que assolaram os montes e vales durante séculos, até a própria terra gemer e o submundo colapsar, sob o peso de tanta perfídia. Foram os tempos terríveis da Orogenia Sintrina, quando os dragões se escaparam do submundo e tomaram por lares as montanhas mais altas.

Desse imenso subterrâneo original restaram algumas cavernas, grutas, desfiladeiros e outros lugares onde a luz do Sol nunca brilha, lugares que se distiguem pela atmosfera de maldade que neles se respira. Uma vasta caverna, um pouco maior do que o Lugar de Oeiras no tempo da sua maior extensão, não colapsou, devido ao poder exercido pelos seres especialmente poderosos que a habitavam. Aqui acorriam todas as noites os seres negros que não suportavam a luz do dia, agora combatidos pelas milícias de gente do Lugar. A única porta, a porta terrestre, acabou por ser selada e o horror aí encerrado, lentamente, foi desaparecendo das memórias.

Esta tradição afirma que essa última porta era aquela que se situava no Desfiladeiro e que a fortaleza fora construída no tempo em que os homens do Lugar eram nobres e fortes; e a sua força era suficiente para manter o mal encerrado.

À medida o homens poder destes aumentou, porém, tornaram-se arrogantes e a sua vigilância enfraqueceu. No tempo de Bartolomeu I os campos eram ricos e as estradas seguras, as cidades estavam cheias de mercadorias exóticas, mas as fronteiras do Lugar já se encontravam em recuo, pressionadas por inimigos atraídos pela opulência da vida Ueirense. A bravura e o estudo eram cada vez menos procurados pelos jovens das cidades, que faziam por se promover no seio da sua sociedade abastada unicamente por vaidade; as terras de fronteira viam muitos despedir-se de uma vida de vigilância e incerteza e correr também eles para o luxo das cidades, pelo que fora necessário instalar guarnições e construír fortalezas nas terras quase desertas do exterior.

Com o passar do tempo, também essas fortalezas foram abandonadas; rumores de criaturas malignas a serem vistas nos campos e até nas estradas foram chegando de regiões cada vez mais próximas do centro do Lugar.

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