26 novembro, 2006

A Porta do Submundo II

A Porta do Sub-Mundo foi aberta pela primeira vez no tempo de Amagadão, o nono rei. O seu filho, Gualro, que teria sido o décimo rei, foi convencido pelos republicanos de O’Lispo de que uma pessoa não tinha o direito de governar somente pelo nascimento; foi tudo quanto o Infante foi capaz de aprender. Educado na prática das armas e dos torneios, era incapaz de apreender conceitos tão abstractos como o de “governar pela vontade do povo”, hoje tão em voga. Assim, Gualro propôs aos seus correligionários que, a partir do seu reinado, todos os Infantes devessem provar o seu mérito se pretendessem suceder a seu pai no trono; bem assim como todos os varões da nobreza.

Frustrados, os republicanos riscaram Gualro das suas listas e o rei, Amagadão, tão satisfeito pela boa ideia do filho como pelo facto de ele próprio, que já era rei, ficar dispensado da prova de mérito, promulgou a proposta e dela fez lei. Constituiu-se assim a conhecida Casa do Mérito, que conferia tarefas aos fidalgotes aspirantes a herdeiros: uma boa forma de encontrar “voluntários” para aquelas coisas que ninguém quer fazer, tais como salvar camponeses dos Pântanos das Visões, passar mensagens para o outro lado da Floresta ou mesmo partir em missão de paz para O’Lispo, levendo as palavras apaziguadoras de um rei em idade já demasiado avançada para sentir o mesmo entusiasmo que os seus súbditos pela guerra entre os dois estados, por estes constantemente atiçada.

Gualro, como primreiro Chanceler da Casa do Mérito, decidiu atribuír-se uma tarefa “digna de um futuro rei”. Numa atitude de orgulho irreflectido, contestada em todos os círculos e expressamente proibida pelo rei, desafiou o seu destino, os seus conterrâneos e as suas capacidades, marchando para o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes para abrir a Porta do Sub-Mundo e matar o gigante Tripas, trazendo de volta as suas três cabeças. O gigante tinha três olhos (um por cabeça), três braços e três pernas e era impressionante na sua fealdade. Era a criatura mais obesa do Sub-Mundo, sustentando as banhas, que lhe caíam como um manto, com cintas de couro. Usava três chicotes com espinhos na ponta, que brandia com as três mãos e aterrorizava os sonhos dos adolescentes, impedindo-os de terem um desenvolvimento normal; os adolescentes possuídos eram fechado no mosteiro de L’Seia, cujos monges eram auto-flageladores toda a vida e tinham publicado obras em que se considerava que Deus estava louco, que o seu Espírito Santo voava perdido de amores por meia dúzia de pombecas adolescentes em O’Lispo e os homens entregues à inevitabilidade dos infernos após a morte – pelo que melhor era irem‑se preparando em vida.

Como é evidente, esta popular filosofia não era nada saudável para o reino. Tendo os tormentos eternos como algo inevitável, as pessoas não se esforçariam por lhes escapar. Os flageladores de L’Seia eram vistos como desesperados, abominações; se saiam do seu convento, eram perseguidos pelos soldados e evitados pelos camponeses.

Gualro acreditava que matando o monstro Tripas, a doença dos L’Seus terminaria e que era obrigação sua, a bem da paz do seu futuro reino, levar a cabo esta tarefa.

Partiu sozinho, seguido pela guarda real que, por ordem do monarca, seu pai, deveria impedi-lo de levar a cabo esse projecto. Os Velhos do Restelo, outra confraria monástica bastante mais popular e carismática do que os L’Seus e cujo mosteiro se situava à beira-Tejo, preconizaram desgraças que adviriam da atitude insensata do jovem príncipe. Com efeito, este abriu a pesada porta de basalto e entrou no Sub-Mundo, em busca do gigante. Nunca mais foi visto, mas o seu equipamento foi encontrado disperso mais abaixo nas margens do rio Tejo.

Durante semanas viveu-se um pesado luto em Ueiras, embora a discrição fosse imposta a todos. Pretendia-se evitar que em O’Lispo se soubesse que a cidade estava sem herdeiro, indo o monarca já avançado no seu oitavo decénio. Este teve que repudiar e condenar à morte a sua velha companheira de sempre, a raínha, para casar com uma jovem fértil que lhe restituisse um herdeiro.

Um ano depois, Ueiras estava de novo em festa, com o nascimento do Infante Trompo; entretanto, o rei mandara fechar de novo a Porta do Sub-Mundo, não fossem as criaturas vis dos Infernos escapar-se para as Terras Livres. Os Velhos do Restelo agoiraram desgraças para os dias do Infante Trompo, pois as portas, uma vez abertas, não podiam ser de novo fechadas sem o recurso a palavras de poder que se tinham perdido na aurora dos tempos. Trompo estava ainda, segundo os Velhos, marcado desde o nascimento pelo orgulho do seu meio-irmão e pelo assassínio da primeira mulher do rei.

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