11 novembro, 2008

A Porta do Submundo III

Trompo, o décimo rei de Hueiras, foi entronizado ainda adolescente após a morte do seu pai, Amagadão, que definhou e morreu de desgosto, velho mas sem atingir idade centenária. Nesse tempo os hueirenses acreditavam que a Porta tinha sido fechada para sempre; os mais atentos, contudo, podiam verificar que o antigo bloco de basalto tinha assentado ligeiramente ao ser recolocado na abertura e esta não ficara hermeticamente selada: havia um intervalo, no topo, por onde não passaria um fio de cabelo, mas lembrava aos mais desiludidos que a História é uma viagem sem regresso e o que foi feito não pode ser desfeito.

Aconteceu que o Lugar d'Hueiras foi atingido por uma terrível praga de mosquitos, ainda o povo do Lugar não caíra na conta do contrasenso em que incorria ao dirigir-se ao jovem Trompo como "Pequena Majestade" - eram barrocos e abusadores de uma língua degenerada que se aprazia em urdir monstros como títulos, com que agraciavam um "Grande Ministro" ou a respeitada classe profissional dos Mestres Menores. Sua Pequena Majestade Trompolemeu Filiopater, era mesmo assim, não declinado (como alguns sugeriam que pudesse ser - Filio Patris, filhinho do papá); em suma, um verdadeiro mistério filológico para alimentar as teologias dos séculos vindouros.

Os mosquitos atacavam em grandes enxames e, por maior que fosse o número dos que morriam sob as palmadas dos hueireses, vinham sempre mais. Picavam até só restar um cadáver exangue e passavam a nova vítima.

O rei Trompo dormia com uma real rede mosquiteira e fizera-se guardar por um Corpo de Reais Mosquiteiros, treinados no uso dos seus floretes afiados até se tornarem exímios em fazer espetadas de mosquitos. O zelo dos Mosquiteiros, no entanto, não evitou que os mosquitos acabassem por descobrir caminho para a real câmara pelo buraco da fechadura, tendo havido grande confusão entre a mosquitada quando se depararam com a cortina de seda ungida com urina de bode que encerrava o leito de Sua Pequena Majestade.

Tanto zumbiram e zurziram que o Rei, impedido de dormir durante várias noites seguidas, entrou em delírio. Saía da protecção dos cristais de ureia e carregava nas bestinhas com o seu montante afiado, procurando cortá-los em dois. Apesar do rigoroso treino e da sua compleição exageradamente atlética, como era moda entre os jovens daquele tempo, acabava por cansar-se e voltava a refugiar-se debaixo do dossel, impedido de dormir pela barulheira constante, entregue a cada vez mais negros pensamentos.

O delírio arrastava-se para uma demência cada vez mais persistente; piorou um dia, quando o rei saíu dos seus aposentos, nú e armado com um cinto de couro, arremessando o cinto como um chicote contra as paredes, segundo ele para atingir os temíveis mosquitos de sete ferrões. Que havia de brandir o cinto incessantemente até as paredes ficarem cobertas de pequenas pintas de sangue; até a cal desaparecer sob os cadáveres estripados dos ignominiosos insectos!, bradava. De facto, passadas mais umas noites esquizóides, o cinto começava a ganhar volume e as paredes exalavam um odor fétido a podridão.

Então, sem causa aparente que o justificasse, a praga retirou-se, tendo dizimado uma... eeh... décima parte da população de Hueiras, e instalou-se no Pântano das Visões. O rei adolescente, incurável já da sua loucura, perseguiu-os febrilmente, brandindo o cinto até se perder nas brenhas e nos charcos do paúl. Acabou por ser devorado por uma planta carnívora, de uma espécie autóctone dos pântanos hueirenses chamada Mordetrinca. Os sábios botânicos do Lugar não perderam tempo a procurar sossegar a população horrorizada, defendendo a Mordetrinca, que não ataca seres humanos - apenas queria apanhar o cinto.

Assim se perdeu o décimo rei de Hueiras, deixando um trono sem herdeiro e abrindo caminho à primeira e sangrenta guerra pela sucessão.

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