26 novembro, 2006

História de Barzubal, Décimo-Quarto Rei de Ueiras

Escrevo estas palavras sobre as pedras duras desta parede, convencido de que me sobreviverão. Refugiei-me nas masmorras do castelo, e não posso sair. Lá fora, a hedionda maldição que eu fiz cair sobre o meu reino de Ueiras continua o seu trabalho demolidor; pela frequência com que a terra treme, aqui em baixo, já não deve haver muito por derrubar na cidade; o castelo foi das primeiras construções a ser reduzida a escombros, e eu não posso sair.

Aproveito a pouca vida que me resta para redigir este testemunho, na esperança de que pelo menos estas paredes fiquem de pé quando tudo o mais tiver sido destruído. É com as entranhas dos vermes que encontro, que escrevo as minhas últimas palavras; parecem existir aqui em quantidades suficientes para o que me proporciono relatar. Sinto um prazer especial em trucidar as pequenas e viscosas lesmas contra a parede áspera, dado que é uma dessas vis criaturas que arrasta o seu ventre inchado por entre as ruínas da minha cidade, destruindo tudo o que apresente menor entropia do que a sua massa visceral. Uma lesma gigantesca, que eu, desgraçado e condenado seja a cozer em lume brando nos infernos do maldito submundo, soltei. Decidi apelidá-la de Gigalesma.

Eis a história, tragicamente simples, de como eu soltei tão odiosa besta. Se sair vivo daqui, dar-lhe-ei o título de “Faça você mesmo! Como criar um monstro com uma lesma e uma retrete de desintegração radiactiva”. Pois foi assim mesmo que eu, por fatalidade, procedi. Que a minha cabeça imploda na sua ignorância, em memória da cidade que fiz destruir e dos seus habitantes, que condenei a uma morte horrenda. Confesso, a quem ler as minhas últimas palavras que, possuído pela vil luxúria que deita por terra a dignidade de um homem fraco, traí a minha senhora, morta pela visão aterradora do monstro Gigalesma e pela fragilidade do seu coração inocente, que agora me olha com complacência e perdão a partir do seu paraíso de esquecimento; com a sua massa encefálica continuo o meu relato, esgotados que estão os vermes mais acessíveis desta catacumba.

Tendo-me dirigido à cozinha do castelo, na madrugada do último dia em que os meus olhos contemplaram a beleza dos telhados desta cidade-mártir, com o propósito de tomar pela força uma voluptuosa cozinheira... Eis que o meu pé descalço fica preso em algo de viscosamente peganhento, quase me derrubando e acordando o pessoal do serviço da cozinha. Chegando a mão ao pé para me libertar, reparei que tinha pisado uma lesma.

Maldito verme imundo conspurcando a minha cozinha!... Num violento gesto de repulsa, arremessei o cadáver estripado para dentro da cisterna, uma espécie de desintegrador radiactivo por onde os detritos domésticos passavam todos antes de serem despejados no fosso. Ai de mim, que atitude irreflectida! O desintegrador tinha um efeito neutralizador em matéria inerte, mas os seus efeitos sobre seres animados com o sopro da vida estavam ainda mal estudados, e a maldita lesma, se já não estava bem viva, também não estava bem morta...

Na altura, foi pensamento que não me ocorreu. Chegando aos alojamentos da criadagem, preparava-me para abrir a porta quando, num estrondo ensurdecedor, uma enorme massa orgânica irrompe pelo corredor, vinda da cozinha, derrubando as paredes com a própria pressão do seu inconcebível volume. Ai de mim, era a lesma, agora tornada Gigalesma, e se eu, numa atitude de cobardia, me precipitei, em fuga, pela escadaria acima, já a criadagem ficava esmigalhada pelos blocos de granito soltos pela passagem da besta impura.

Alimentando-se exclusivamente de detritos orgânicos, a bicha viu naquela gente moribunda bom petisco e demorou-se a saciar a sua fome. Entretanto, eu, esquecido da luxúria que antes me atormentava a virilidade, corri para a segurança dos aposentos da rainha, onde minha senhora acordara com o estremecer do castelo. Assustada ainda mais com a minha entrada, rasgado e ofegante, ela empalideceu com o estrondo cada vez mais próximo e quis saber que praga tinha Deus enviado desta vez para castigar a ignomínia humana. E, ó martírio!, o seu coração frágil não aguentou a visão do verme fazendo saltar a porta do quarto e espremendo-se para dentro, em busca de mais pasto.

Procurando, desesperadamente, salvar a dignidade desta casa e a minha vida, atirei o corpo inerte daquela infeliz mulher pela janela e saltei de seguida, de um altura de quarenta degraus, para o pátio do castelo. Aterrei amparado pelo cadáver da minha senhora - mesmo traído repetidamente, e morta por minha incúria, ainda me salvava a vida!

Por essa razão, para que não fosse devorado pelo monstro, arrastei o féretro comigo quando fugia para as masmorras, soando a trombeta de alarme, enquanto o monstro flácido escorria pela janela abaixo. Consegui chegar aqui e tranquei a única passagem para o exterior. Pouco depois, ouvi o barulho de muitos pedregulhos acumulando-se do outro lado da porta, enquanto as fundações do castelo tremiam e amaçavam ceder. Assim fiquei encurralado, sem qualquer esperança de sair.

Durante dias tenho vivido fechado nestas caves, ouvindo o arrastar do ventre da monstruosidade mutante pelas ruas da cidade, verdadeira dispensa para quem se alimenta exclusivamente de detritos orgânicos... Chorei pela última vez a minha senhora há dias, ou ao que me parecem dias. Tão perto do fim, tem sido ainda ela que me mantém vivo, enquanto a vou assando nos archotes das paredes. O seu crânio está quase vazio, agora.

Pouco mais posso escrever... Toda a minha esperança está em que alguém de coração intrépido vingue o meu povo acabando com a existência da criatura hedionda... Para o que resta dos meus dias não me resta esperança nenhuma.

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